O FUTURO DA ÁGUA BRASILEIRA SERÁ DECIDIDO NOS TRIBUNAIS ?
João Fellet e Rafael Barifouse
de Brasília e São Paulo para a BBC Brasil
O Brasil detém pouco mais de um décimo das reservas de água potável do mundo, no entanto, o País já registra um conflito por água a cada quatro dias, segundo o mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra, órgão ligado à Igreja Católica, obtido com exclusividade pela BBC Brasil. Em 2013, foram registradas 93 disputas locais em 19 Estados, 19% a mais do que no ano anterior. Mas esses conflitos não estão se tornando apenas frequentes. Também vêm assumindo dimensões inéditas.
Rio Paraíba do Sul
Há pouco mais de uma semana, os governos do
Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo vivem um
embate. A razão é o projeto de São Paulo de captar
água do rio Paraíba do Sul e levá-lo ao sistema
Cantareira, grupo de reserfvatórios que abastece 15
milhões de pessoas na região metropolitana de São
Paulo e no interior do Estado. O problema é que esse
rio já abastece outras 15 milhões de pessoas no
Grande Rio e no interior paulista. O governo
fluminense é contra a proposta. Desde então, Rio e
São Paulo trocam farpas e ameaças de processo
publicamente.
Não se tinha notícia – até agora – de um conflito
desta proporção, envolvendo os dois Estados mais
ricos da federação e que coloca em jogo o
abastecimento de 15% da população do país. "É o
conflito mais sério que já tivemos", diz Sandra Kishi,
procuradora regional da República e coordenadora do
grupo de trabalho de águas do Ministério Público
Federal (MPF).
Prejuízos
O Rio de Janeiro alega que será prejudicado porque
hoje não tem outra fonte de abastecimento. São
Paulo retruca que a ligação não trará prejuízos ao Rio,
porque só captaria 5% do volume fornecido
atualmente ao Estado fluminense e que a medida será
vantajosa para ambos os Estados porque, quando
chover demais no reservatório que atende São Paulo,
será possível guardar o excesso de água no
reservatório que atende o Rio (e vice-versa), criando
um sistema de estoque para quando chover pouco.
O rio Paraíba do Sul abastece 15 milhões de pessoas
São Paulo ainda alerta que o Rio não pode interferir
na questão porque a ligação estaria dentro dos limites
paulistas. "Providenciaremos os documentos
necessários para a permissão", diz o secretário
estadual de saneamento e recursos hídricos de São
Paulo, Edson Giriboni, à BBC Brasil. "Sempre
podemos recorrer à Justiça se necessário. Se vamos
ou não fazer isso, depende deles".
Se a permissão for concedida a São Paulo, ela poderá
ser questionada no Supremo Tribunal Federal,
instância onde são resolvidas as contendas entre
Estados. "Não se pode dizer que vai fazer o quiser
porque o rio é fluminense ou paulista. O curso da
água não respeita fronteiras", afirma Kishi, do MPF.
"Essa decisão caberá ao comitê que administra a
bacia do Paraíba do Sul."
Fim da ilusão
Haver disputas por água no Brasil é uma situação
que, a princípio, parece contraditória. O país detém
12% da água potável do mundo e sempre foi
apontado como uma das regiões do planeta onde
haverá menos riscos de falta de água neste século.
Mas a estiagem entre dezembro e fevereiro passados,
a pior em oito décadas, mostrou que essa abundância
é uma ilusão. Há muita água, mas ela está mal
distribuída. Cerca de 80% fica na região amazônica,
onde vive 5% da população. Os outros 95% dos
brasileiros precisam dividir os 20% que restam.
Esse problema se agrava porque grande parte das
fontes de água nas regiões mais populosas do país
está poluída demais. Um levantamento da ONG SOS
Mata Atlântica mostra que 40% de 96 rios, córregos
ou lagos das regiões Sul e Sudeste apresentam
qualidade ruim ou péssima. Quanto mais próximo dos
centros urbanos, pior sua situação.
"A ideia de abundância nos mimou", diz Rômulo
Sampaio, do centro de meio ambiente da escola de
Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio. "Os
políticos não investiram o suficiente porque pensaram
que não seria necessário e ainda maltratamos os
recursos que temos."
Conflito de interesses
Isso obriga cidades a ir buscar água cada vez mais
longe. Em algum momento, seus interesses entram
em conflito. É o que ocorre entre Rio e São Paulo e
entre outros Estados brasileiros.
Outros conflitos
Rio Grande do Norte X Paraíba
Na década passada, o Rio Grande do Norte se queixou
do volume de água que a Paraíba estava extraindo do
rio Piranhas Açu, que atravessa os dois Estados e
abastece 147 municípios.
Após várias reuniões coordenadas pela Agência
Nacional de Águas (ANA), definiu-se uma vazão
mínima que a Paraíba deve liberar ao Estado vizinho.
Goiás X Minas Gerais
Na bacia do rio São Marcos, agricultores de Goiás e
Minas Gerais disputam licenças para extrair água para
suas terras.
O conflito envolve ainda a hidrelétrica de Batalha, que
diz que o uso intensivo de água para irrigação tem
prejudicado a operação da usina. A ANA negocia com
os envolvidos uma solução.
Com a estiagem, o nível do sistema Cantareira
chegou a 14%, o menor nível desde sua criação. A
fragilidade do sistema que abastece metade da
população da Grande São Paulo ficou evidente e fez o
governo paulista querer por em prática o projeto do
Paraíba do Sul, que estava em estudo havia seis
anos.
"Solucionar a questão hídrica é o maior desafio do
Direito ambiental hoje", afirma Sampaio. "Temos
boas regras para lidar com isso, criadas nos anos
1990. Agora elas serão testadas."
De quem é a água?
A Política Nacional de Recursos Hídricos foi criada em
1997 e, desde então, é o principal norte da gestão da
água no país. Nela, foram estabelecidos princípios
importantes, como a prioridade do abastecimento
humano e de animais e o incentivo ao uso eficiente da
água. Mas a lei não diz quem tem mais direitos sobre
determinada fonte hídrica.
O advogado Paulo Affonso Leme Machado, ex-
consultor da ONU e um dos mais respeitados
especialistas em Direito ambiental no país, defende
uma interpretação conjunta de três artigos da política
que daria prioridade ao uso das águas de uma bacia
aos habitantes dos municípios que existem nela.
"Isso não está expresso na lei, mas pode ser inferida
porque ela estabelece a bacia hidrográfica como
unidade mais importante do sistema hídrico, cria o
controle do uso e afirma que tudo que é arrecadado
com suas águas deve ser reinvestido, em primeiro
lugar, na própria bacia", diz Machado.
A partir dessa interpretação, defendida também por
outros juristas consultados pela BBC Brasil, São Paulo
não teria o direito de usar recursos de uma bacia fora
de seus limites geográficos em prejuízo de outras
cidades que estão nesta bacia. "Fazer isso é mais que
injustiça, é anarquia", diz Machado.
Teste nos tribunais
Esta interpretação ainda não foi testada nos tribunais,
o que pode ocorrer em breve não só por causa da
disputa entre Rio e São Paulo, mas também por outro
conflito envolvendo a Grande São Paulo.
A permissão de uso do Cantareira expirará em agosto
e está sendo rediscutida. Além da região
metropolitana da capital paulista, este sistema
abastece 76 cidades no interior do Estado, que pedem
mais água além do limite atual para a região, de 3 mil
litros por segundo.
No entanto, o Cantareira já opera no limite
estabelecido por regras ambientais. Para o interior ter
mais água, seria preciso reduzir o volume de 24,8 mil
litros por segundo fornecido à Grande São Paulo, que
por sua vez também pleiteia um limite maior. Não
será possível atender às duas regiões sem causar
danos ao sistema.