*Leonardo Boff (do Blog "Cultivando Água Boa")
A água, objetivamente, é um bem natural comum,
vital e insubstituível. Ocorre que vivemos numa
quadra histórica em que o modo de produção
dominante e hoje globalizado transforma literalmente
tudo em mercadoria, até as coisas mais sagradas e
vitais. Os direitos humanos inalienáveis são
rebaixados a necessidades humanas. Para a sua
satisfação deve-se obedecer as leis da oferta e da
procura, próprias do mercado. Só tem direitos quem
puder pagar e for consumidor, e não quem for
pessoa, independente de sua condição econômico-
social. É uma traição aos ideais da modernidade.
A água doce, por ser um bem cada vez mais escasso
– somente 0,7% é acessível ao consumo humano –
mais e mais ganha preço e se transforma em objeto
de cobiça mundial. Vigora uma corrida frenética de
grandes multinacionais para privatizar a água,
transformá-la em recurso hídrico e em mercadoria
com a qual se pode ganhar muito dinheiro. Cuidou-
se para que fosse demolida a compreensão
humanística e ética de que o acesso à água fosse
direito humano fundamental. Conseguiu-se que
fosse reduzida a uma necessidade como qualquer
outra, cuja satisfação deve ser encontrada no
mercado. Foi o que, efetivamente, declarou o 2º
Fórum Mundial da Água, em 2000: a água não é
mais um direito inalienável mas uma mera
necessidade humana.
Agora começou uma guerra ferrenha pelo controle e
acesso à água potável. Quem controla, detém um
poder de vida ou de morte sobre milhões e milhões
de pessoas. Hoje, 1,6 bilhão de pessoas têm grave
insuficiência de água e em 2020 serão 3 bilhões
numa humanidade com 8 bilhões de pessoas. Estas
poderão ver negado o acesso à água porque não
terão como adquiri-la e estarão sob risco de vida.
Há tempos o vice-presidente do Banco Mundial,
Ismali Serageldin, dizia com razão: “Se as guerras
do século XX foram por petróleo, as do século XXI
serão por água potável”. Com efeito, atualmente
existem 50 conflitos no mundo por causa da falta de
água, já que 40% da população mundial vive junto a
250 bacias fluviais. A bacia do Tigre e do Eufrates é
o centro do contencioso entre a Turquia, a Síria e o
Iraque; a bacia do rio Jordão, entre Síria, Palestina,
Israel, Jordânia e Líbano; a bacia do Ganges e do
Indo, entre Bangladesh, Índia e Paquistão, e assim a
bacia do Nilo e do Zambesi.
Como enfrentar as hidromáfias e evitar as guerras
por água? Em primeiro lugar, demolindo a
compreensão materialista que subjaz à lógica das
privatizações da água. Ao considerar tudo mercadoria,
ela destrói qualquer sentimento ético, ecológico e
espiritual ligado diretamente à água. Em segundo
lugar, resgatando o sentido originário da água como
matriz de todas as formas de vida sobre a Terra. Em
terceiro lugar,, criando, como muitos o
estão propondo, a consciência de que um necessário
pacto social mundial deve ser feito em cima do tema
da água, já que todos precisam dela para viver. Por
fim, em nome desta consciência planetária não se há
de conceder a ninguém o direito de privatizar a
água. Ela deve ser excluída das negociações
comerciais em nível mundial.
A água é um dom que a natureza ofereceu à vida e a
cada um de nós. 70% do nosso corpo é composto de
água. Porque é tudo isso, a água constitui uma das
metáforas mais significativas do Divino que está em
nós e no universo e da sacralidade de toda a vida.
Como não lutar por ela e cuidá-la?
*Leonardo Boff é autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.